Dor, saudades, alegria: a história de um transplante na Paraíba que une duas famílias que não se conhecem

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Willis Pereira Evangelista tem 62 anos e, à primeira vista, leva uma vida absolutamente normal. Mantém um cotidiano regrado, um estilo de vida para lá de saudável, um jeito feliz e agradecido de falar sobre a sua própria existência. Mora atualmente na praia de Jacumã, em Conde. Acorda cedo, caminha bastante vendendo doces para moradores e turistas da região, orgulha-se de um “cardápio” que tem 32 sabores diferentes de seus produtos.

Outro orgulho é o fato de “fazer tudo” hoje em dia. “Tudo mesmo”, ele enfatiza, e cita ações aparentemente simplórias como dirigir, tomar banho sozinho, comer de tudo, conversar demoradamente sem se cansar. Seria uma história repleta de obviedades se não fosse o detalhe de que apenas dez meses atrás ele tinha pouquíssimas chances de sobreviver a um transplante do coração.

“Eu vivi um milagre em minha vida”, resume Willis.

Na época do transplante, a propósito, realizado em 26 de março de 2022, o nome dele ganhou os portais de notícia e o noticiário televisivo paraibano. Não era um transplante qualquer, afinal, mas o primeiro de coração a ser realizado em um hospital público da Paraíba e totalmente financiado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E, como toda história sobre transplantes, essa tem dois lados, duas histórias, duas famílias aleatórias que mesmo sem se conhecerem foram unidas de alguma forma pelo acaso, por um gesto de solidariedade, por uma compatibilidade que mais parece uma loteria.

Nesse caso, o outro lado é protagonizado por Isa e por sua mãe Gorete Fernandes. Isa morreu num acidente de moto dois dias antes do transplante, no município de São Bento, Sertão da Paraíba, e foi Gorete quem se mobilizou para prestar o seu último desejo.

“Costumava dizer assim: ‘se um dia acontecer alguma coisa comigo, tudo o que for meu e ainda prestar é para doar’. Então autorizamos a doação de órgãos”, explica a mãe.

Dez meses depois do acidente, do transplante, da mudança definitiva nas histórias de duas vidas e de duas famílias, fomos atrás dos personagens de todo aquele episódio para saber como foi a primeira virada do ano dessas pessoas que nem mesmo se conhecem ainda. Apesar de deixarem claro que querem fazer isso um dia.

O acidente, a dor, a batida do coração

Isa tinha 20 anos. Pelas fotos, por alguns relatos, pelo nome que adotou como seu, era possivelmente uma mulher trans. Mas a mãe Gorete, ao falar com saudade, dor, choro, desespero até, se refere sempre ao “filho”, no masculino.

“Eu sinto muita saudade dele. Era a alegria da casa no fim de ano. Foi um pedaço de mim que se foi e que não sai um dia sequer de meu pensamento. Comecei a tomar remédios para aguentar a dor de ter perdido o meu filho”, desabafa.

Gorete viveu e criou os oito filhos em Cajazeiras. Alguns meses antes do acidente, Isa se mudou a trabalho para São Bento. Depois, levou a mãe para o mesmo município. Passaram a morar na mesma casa. “Fui atrás dele para ficar perto. Era como se fosse uma despedida”, destaca Gorete.

O acidente aconteceu na madrugada de 24 de março. Isa estava bebendo na praça da cidade com uma tia e alguns amigos quando resolveu abastecer a moto em que estava. Era para ser um percurso curto e para, em pouco tempo, estar de volta à praça. Numa curva no caminho para o posto de combustível, contudo, perdeu o controle. Bateu. Feriu-se. Isa ainda teve forças para chamar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas chegou ao hospital em situação grave.

A mãe foi avisada do acidente. Pouco tempo depois, estava também ela no hospital. Isa ainda estava consciente quando a mãe encostou o ouvido em seu peito. Estavam dentro de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) na unidade hospitalar de São Bento quando uma última cena ficou marcada na memória de Gorete:

“Cheguei lá. Ele me abraçou e apertou minha mão. Encostei a minha cabeça no peito dele e escutei o coração de meu filho. Foi a última vez que vi o coraçãozinho dele bater. E veio uma voz em minha mente… ‘tem que ser doado’. É um alento. Sei que meu filho se foi, mas por uma parte ele salvou vidas”, comenta Gorete emocionada.

Gorete é uma mulher muito pobre, sem emprego fixo, educação formal deficitária, que cuidou dos filhos na base de faxinas e bicos eventuais. Tem 45 anos. Admite que nem sempre consegue o dinheiro suficiente para ter o que comer. “A vida é difícil, mas a gente vai vivendo”, resume.

Com a morte de Isa, a situação ficou ainda mais dolorosa. Mas Gorete diz que se apega ao que pode. Por exemplo, gosta de dizer sempre que continua tendo oito filhos. E a explicação é simples:

“Para mim ainda são oito filhos, porque o coração dele bate e ainda está na terra. Ficou um pedacinho dele que ainda vive”, prossegue Gorete.

Tudo isso, para ela, lhe traz sentimentos mistos de alegria e tristeza. De forma que, desde então, o seu sonho é apenas um. Conhecer a pessoa que recebeu o coração de Isa, poder colocar seu ouvido no peito dela, repetir o gesto derradeiro que fez ainda na UTI em São Bento. “É um sonho muito grande que eu tenho. Uma última vez, escutar o coraçãozinho dele bater novamente”.

O telefonema, a cirurgia, a batida do coração

Algumas horas depois do acidente que vitimou Isa, quando a vítima já havia sido transferida e estava no Hospital de Trauma de Campina Grande sob os cuidados da equipe da Central de Transplantes da Paraíba, o telefone de Willis Pereira tocou. Ele estava numa igreja, em meio a orações, mas não titubeou em atender imediatamente. “Era para eu ir ao Hospital Metropolitano porque havia um coração compatível ao meu. Eu não era o primeiro da fila, mas o coração não era compatível com quem estava na minha frente”, comenta eufórico.

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Religioso, Willis credita muito do que reconquistou a Deus. Mas não se omite em elogiar os profissionais de saúde que cuidaram do caso dele e também em exaltar o SUS, que ele chama de “um dos sistemas mais importantes do mundo”.

O caso dele é mesmo atípico. Paraibano, ele morou ao lado da esposa, Sueli Pereira, por 38 anos em São Paulo. Nos últimos anos de sua estadia na capital paulista, contudo, foi acometido por uma doença que afetou o seu coração. Tentou atendimento, mas não conseguiu de forma adequada. Precisava implantar um Cardioversor Desfribilador Implantável (CDI), mas também não conseguia marcar a cirurgia.

A situação, contudo, só se agravava. E, em certo momento de 2018, ele chegou a ficar seis meses internado num hospital paulista sem conseguir resolver seu problema. Foi ali que resolveu voltar para a sua terra e se fixar em Jacumã.

“Assim que fui autorizado pelos médicos a viajar, voltei para a Paraíba. Mas, na época, meu coração já estava muito debilitado”, relembra Willis.

A situação era tão crítica que ele chegou a sofrer um infarto na porta do Complexo Hospitalar Tarcísio Burity, popularmente conhecido por Trauminha de Mangabeira, quando buscava atendimento. Foi reanimado e depois de estabilizado encaminhado para o Metropolitano, que é referência em cardiologia. Foi quando passou a ser paciente da médica Tauane Frasão e Silva. “Um anjo na minha vida”, resume.

Cinco meses depois, ele já conseguia implantar o CDI, que lhe dava uma sobrevida, mas seu caso só era solucionável mesmo com um transplante. “Eu não bebia, não fumava, praticava esportes, tinha uma vida saudável. Mas uma bactéria se alojou em meu coração e o pior aconteceu”, revela.

Willis diz que passou por momentos duros ao longo dos quatro anos de espera e de degradação quase total de sua condição de saúde. Pouco antes da cirurgia, já não conseguia tomar banho sozinho, não podia falar muito porque cansava com rapidez, não conseguia mais andar. Tinha tonturas e enjôos fortes. “Tudo ficou suspenso”, conta. E, sem ter como trabalhar, precisou recorrer a ajuda de amigos, que passaram a comprar remédios e mantimentos para ele e a esposa.

Até que, recebeu o telefonema. Willis se internou no dia 25 de março e no dia 26 se submeteu ao transplante, que durou seis horas.

Ainda assim, a recuperação é lenta e, a rigor, ainda está em curso. Foi uma semana na UTI e 24 dias na enfermaria do hospital até a alta. Depois disso, internações mensais de alguns dias para avaliar a situação e a evolução de seu quadro clínico. Ao todo, já foram sete, sempre com boas notícias. Além disso, todo um trabalho para evitar rejeições. O receptor do órgão explica que nos primeiros meses depois da cirurgia precisava tomar um total de 23 comprimidos por dia. Agora são 19. Até o fim de 2023, esse número deve cair para três ou quatro.

Mas, não importa. Vale qualquer esforço. Ele comenta que os remédios são disponibilizados gratuitamente pelo SUS e que o importante mesmo é a qualidade de vida:

“É como se eu tivesse 40 anos de idade de novo. Sem contar que todos os dias eu melhoro um pouco mais. E assim voltei a viver, a trabalhar, a me alegrar”, comemora Willis.

Ele classifica a doação de órgãos como “um ato de amor ao próximo” e que também ele quer conhecer a família do doador. “Foi muita felicidade poder romper o ano com toda força, energia, alegria. Eu me sinto bem realizado com esta nova vida”, prossegue.

Por fim, é Sueli quem dá o recado. “Esse pessoal faz parte da nossa família, mesmo sem conhecermos. Essa família trouxe vida para Willis através de um filho. É muito forte, isso. É um coração que segue batendo nele”, finaliza.

No fim das contas, são duas realidades distintas, duas famílias que não se conhecem e hoje moram separadas por 485km de distância (já que Willis segue em Jacumã e Gorete voltou para Cajazeiras), duas histórias que talvez jamais se cruzariam se não fosse o acaso de ambas passarem a valorizar a batida saudável e compassada de um mesmo coração.

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